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sábado, 3 de julho de 2010

V- A travessia do mar do dragão.

Então, Kolt e Rackel decidiram viajar até o continente mais próximo em busca de Dana e do tal autor do livro da capadura azul. Mas para isso iriam precisar atravessar o oceano a bordo de uma embarcação. Ambos julgavam-se preparados para uma empreitada tão perigosa, ainda mais tratando-se do mar do dragão cujo muito ouvia-se falar sobre a lendária fera que adormecia em suas águas. Seria necessário ter sangue frio, persistência, sorte e uma embarcação resistente. A única escolha seria construir uma, já que na ilha de Kolt não existiam portos e consequentemente barcos. O menino, com sua engenhosidade peculiar, ofereceu-se para passar a noite construindo uma jangada, que pelos seus cálculos estaria pronta ao nascer do Sol. Já fazia tempo que ele planejava sair da ilha, por isso já tinha algumas idéias na cabeça e aquela era a ocasião perfeita para bota-las em prática.



—Eu dormi o dia inteiro! —dizia enquanto observavam o final do alinhamento das três luas. —Não poderia dormir agora, mesmo se quisesse. Enquanto eu a construo, tu deves dormir um pouco aqui na cama de Dana! Amanhã quando acordares encontraras a embarcação já pronta!


A moça lhe olhou insatisfeita como se sentisse meio excluída.


—Quer construi-la sozinho? Eu posso ajuda-lo! Não pense que sou preguiçosa só porque sou uma menina! Estou com um pouco de sono, mas isso não é problema para mim! Sou uma hiper dotada pronta para situações como essa!!


—Eu acredito! Mas o fato é que a viagem será cansativa, Rackel. Não há razão para nós dois partimos daqui já a beira da exaustão. Descanses um pouco, pois amanhã haverá muito trabalho para nós! Para ser honesto eu preciso que tu estejas bem disposta amanhã bem cedo, momento no qual estarei praticamente paralisado pelo cansaço. Você terá que tomar as rédeas da situação enquanto eu descanso.


Rackel acabou aceitando a sugestão do menino. Se havia uma coisa que ela nunca rejeitava era uma boa noite de sono, ainda mais depois das últimas noites mal dormidas e repletas de pesadelos. Sem muita discussão, a moça deitou-se na cama de palha e procurou ajeitar-se a nova situação.


Na verdade a cama não era nada mais do que uma espécie de caixa grande cheia de palha e forrada com couro, provavelmente de veado. Após mexer-se e remexer-se um pouco ela achou a posição mais confortável. Ao mesmo tempo, observou levemente o interior da casa na árvore e não pode deixar de notar o quanto era desconfortável, embora fosse muito bem construída. A moça identificou em sua construção cipós, peles de veado, troncos médios e folhas com mais de dois metros que jamais vira em sua vida, além é claro dos galhos da própria árvore que explicitamente cortavam o cômodo por todos os lados. Na paralela de cada cama havia um barril onde cada um guardava seus pertences pessoais, uma tentativa forçada de improvisar dois criados-mudos. Naturalmente que a educada Rackel evitou de bisbilhotar seu conteúdo. A iluminação se dava a um conjunto de misteriosas pedras brilhantes que estavam espalhadas por toda a casa que emitiam uma luz fraca e esverdeada, mas suficiente para avistar qualquer objeto no meio da noite. A moça conhecia a capacidade que certos objetos têm em absorver a luz solar, sendo possível assim que brilhem no escuro, mas nada que iluminasse tanto um breu daqueles. Ali não existia nada que lembrasse uma mesa, cadeiras, armários e outros móveis que Rackel julgava importante, mas ainda existia uma abertura que parecia a entrada de outro cômodo. O assoalho era forrado com couro e desconsiderando as falhas do próprio forro, ele era bem plano e planejado. Em outras ocasiões a moça teria analisado cada centímetro da casa minuciosamente, mas esta descrição se limitará de maiores detalhes justamente porque Rackel estava preocupada com outras coisas no momento. Do contrário ela mesma faria um relatório de oitenta páginas sobre cada folhinha que fora usada naquela construção.


O que foi impossível de ignorar foi a genialidade com que a casa fora construída. Tudo aproveitado com muita criatividade, mas cambalachos daquele porte jamais contentariam uma mente contemporânea como a dela no que diz relação a um lar doce lar. Afinal existia uma diferença de mil e cem anos entre aquela cabaninha e o seu quarto na mansão Casanova. Era notável que os gêmeos se empenharam o máximo para fazer da ilha um lugar mais próximo possível do ideal para se viver, mas para Rackel ainda faltava muito para chegarem lá.


—É assim que você e sua irmã dormem?


—Sim!


—Sério? E quê vocês usam para se cobrir?


—Se cobrir?


—Claro! Nunca sentiu frio de madrugada? Não tem medo de pegar uma doença?


—Eu não, mas Dana sente frio e por isso se enfia no meio dessa palha toda como se fosse uma topeira em sua toca! As vezes ela é bem molenga e tu se pareces com ela.


Dessa vez foi Rackel quem fez uma careta horrível. Não imaginava como duas crianças de dez anos poderiam viver durante tanto tempo naquelas condições precárias. Era notório que eram hiper dotados do mais alto nível, do contrário Rackel jamais aceitaria que Kolt trabalhasse enquanto ela dormia. E depois, se eles conseguiam dormir sem cobertor, então ela também haveria de conseguir. Enfiou-se no meio da palha e do forro como Dana fazia e sentiu uma pequena melhora, embora a cama ficasse bem mais dura. Após finalmente instalar-se, Rackel olhou para o menino e sorriu para que ele se tranqüiliza-se. Kolt admirou a persistência da moça.


—Vejo que já não precisas de mim! —disse enquanto preparava para pular de dentro da casa da árvore. —Quando terminar a jangada virei te buscar, então acordes cedo!


A moça riu e disse:


—Você é muito precoce!


Kolt a olhou confuso e saltou sem sequer tocar na escada como sempre. Estava equipado com todas as ferramentas que ele mesmo preparou para esse dia. Tocou o chão suavemente como se fosse um gato e olhou mais um vez para as luas. Carolina, Mercedes e Versalhes já não eram mais um corpo só e o menino perguntou em pensamento:


—Me digas, Carolina! Por que trouxeste essa menina tão estranha para perto de mim? Por que a roubaste de sua terra tão longínqua e a guardaste nessa ilha tão isolada de tudo? E por que não me avisaste que Dana estavas em perigo?


Mas a lua não respondeu e permaneceu em sua posição habitual como um corpo celeste como qualquer outro. Sua única escolha era seguir os conselhos de Celeste como ele mesmo dissera antes. Naquela noite Carolina estava se mostrando uma verdadeira ingrata, esquecendo-se das constantes noites de vigília que Kolt lhe ofereceu e negando qualquer ajuda que ele lhe pedia. O menino teria de fazer tudo por si mesmo ou nada iria mudar, pois só ele seria capaz de mudar o seu destino. Dana só poderia contar com seu irmão para caminhar pelos bosques e colher mais rosas brancas novamente. Pensando nisso, o menino não perdeu mais tempo e deu início ao seu trabalho.


Já era por volta da meia noite quando Kolt passou a derrubar árvores com um machado. Estas despencavam causando um verdadeiro estardalhaço entre os pequenos mamíferos e pássaros que fugiam apavorados daquele “terrível predador”. Era algo muito fácil para ele, pois tinha uma força tremenda nos braços. Com as árvores deitadas no chão, Kolt cortava os galhos com o machado, já que somente os troncos seriam utilizados. Estes ele os arrastou um a um para a praia, onde a embarcação seria construída. Em seguida voltou para a mata onde sabia que cresciam cipós bem resistentes, dos mesmos que foram usados na construção da sua casa. Colheu vários metros, voltou para a praia e os usou para prender os troncos, amarrando-os nas extremidades e no meio. Juntos e bem amarrados formavam um grande retângulo de 10 por 15 metros. Aquela era a base da embarcação e já estava pronta para o próximo passo. Ali havia espaço de sobra para ele, Rackel e todas as outras coisas que iriam levar na travessia.


O menino estava certo de que aquela embarcação não iria afundar, mas sabia que não serviria para nada se ela não navegasse. Ainda faltava algo que a impulsionasse em direção a Lapsus, como remos ou uma vela. Remos não seriam uma escolha prática, pois a embarcação era muito grande e apenas duas pessoas viajariam nela. Uma vela ajudaria muito, mas como não havia tecido algum na ilha Kolt teria que improvisar uma. Sentou-se na areia da praia e pensou em como iria construir aquela parte indispensável para o sucesso da travessia. Primeiramente pensou no couro, mas para isso precisaria caçar algum veado e depois trabalhar a sua pele, coisa que só Dana sabia fazer. Sem contar que toda a sua carne seria desperdiçada e para ele isso seria burrice. Depois pensou em extrair o couro usado na construção da sua própria casa, mas logo voltou atrás, pois ela tinha um valor sentimental muito forte para “a família”. Após matutar bastante, decidiu que primeiro iria construir o mastro para depois pensar em como construir uma vela. Tinha certeza de que alguma idéia apareceria no momento certo.


Nisso já haviam se passado duas horas e o menino retornou para casa para certificar-se de que Rackel estava bem. Esta dormia tranqüilamente e sonhava coisas tão boas que estava sorrindo. Kolt a achava completamente estranha, não pelo modo como se vestia ou pelo seu sotaque, mas sim pela sua personalidade. Rackel era uma moça metida a guerreiro, ao contrário de sua irmã, Dana. Isso era uma grande novidade para o menino. Perguntou para si mesmo se todas as meninas do futuro eram assim. Mas como ele tinha muito o que fazer não demorou muito para retornar a floresta.


Sem mais delongas, ele entrou mais uma vez no matagal, buscou mais metros de cipós e alguns galhos. Como antes, levou toda aquela matéria-prima para a praia e começou a preparar o mastro. Pôs o maior galho de todos em um pequeno buraco no meio da embarcação, usando os seus grandes conhecimento de nós conseguiu mante-lo de pé com uma firmeza impressionante. Com o resto bastou dar os toques finais no mastro.


Foi então que, do nada, Kolt lembrou-se das folhas gigantes que usou quando construiu o telhado da sua casa. Sua vantagem era a sua grande resistência, pois elas demoravam anos para serem perfuradas pelo vento e pela chuva, mesmo depois de arrancadas de seus galhos. Não poderia encontrar material melhor na ilha para se improvisar uma vela. Com o seu pique incansável, voltou para a floresta e procurou pela árvore gigante. Sem a menor dificuldade escalou o imenso vegetal, colheu cinco folhas gigantes e as levou para a praia. Quando chegou lá, notou que iria precisar junta-las como se fosse um tecido de retalhos ou não prestariam para ser uma vela. O mesmo problema ocorreu na construção do telhado, mas foi resolvido graças a seiva de uma outra árvore que tinha um alto poder colante. E o menino voltou para a floresta mais uma vez e foi até onde a árvore da seiva se encontrava. Com a faca de pedra feriu a casca dela até que a seiva escorresse e a colheu com um pote de barro. Voltou para a praia e colou as folhas gigantes umas nas outras, improvisando um grande tecido para a vela. Ainda aproveitou para aplicar a seiva em toda a embarcação para que tudo ficassem bem preso.


Enfim terminara a embarcação. No final das contas ela era muito simples, constituída apenas da base, mastro e vela. Como já tinha a maioria dos procedimentos “rascunhados” em sua mente com meses de antecedência, mesmo sozinho o menino conseguiu construi-la em poucas horas. Kolt ainda tinha muitas idéias que poderiam aperfeiçoa-la ainda mais, como uma pequena casinha para proteger seus tripulantes da chuva e uma rede que prenderia muitos peixes enquanto a embarcação estivesse em movimento. Mas não havia mais tempo para adicionar muitas inovações, além da exaustão do menino, que não agüentaria mais horas de trabalho. Porém, a principal razão para deixa-la como estava era que não pretendia passar muito tempo no mar. Acreditava que qualquer desconforto poderia ser superado, já que a travessia duraria no máximo sete dias. Quando chegassem ao continente de Lapsus ela perderia completamente a sua utilidade. Considerando esses fatores, pelo menos para ele, a embarcação já estava muito bem preparada para a jornada.


Após dar os retoques finais, alguns potes de seiva a mais e uma conferida nos nós, o menino decidiu descansar e sentou-se na areia de frente para o mar. Estava exausto, mas em compensação havia terminado o seu trabalho antes do Sol nascer, coisa que não tardaria muito para acontecer. Sentia-se orgulhoso do seu novo invento e ansioso para mostra-lo para o mundo. A embarcação ficara muito mais bonita depois de ter saído de sua cabeça para as areias da praia. O sentimento de satisfação era imenso.


Seu instinto lhe dizia que o dia seria ótimo para a travessia do mar do dragão. Não havia sinais de tempestades e Kolt era muito bom para prever o clima. Decerto seria uma viajem bem tranqüila, talvez até monótona. Seu único temor era encontrar o dragão e ser devorado, embora soubesse que encontra-lo era uma das coisas mais raras do mundo. Ele não queria demorar mais tempo naquela ilha, mas precisava descansar um pouco. Depois planejava voltar para casa buscar Rackel. Porém...


—UAU!!!! —gritou uma voz por trás do menino. Ele virou-se rapidamente e viu Rackel. Estava com o livro nos braços e as outras coisas que ele separara na noite anterior. Não foi necessário ir busca-la, pois a garota havia acordado antes do Sol nascer e já estava pronta para partir. Isso deixou Kolt muito impressionado.


A moça aproximou-se com os olhos grudados na embarcação. Parecia sair de uma história épica tamanha a sua engenhosidade. Estava admirada com a grande embarcação que possuía uma vela verde feita com folhas gigantes. Era preciso muita imaginação para criar algo tão único e muita habilidade para construi-la em apenas uma noite. Então ela finalmente percebeu que Kolt desenvolvera uma técnica de construção toda peculiar baseada nos recursos da floresta e que provavelmente poderia construir qualquer abrigo ou meio de transporte com ela. Quando voltasse para casa certamente faria um poema sobre aquilo em seu computador.


—Vejo que gostaste! —disse Kolt. —Terminei agora a pouco. Poderia ficar melhor, mas tenho pressa em sair daqui.


—É linda!! Mas é segura?


—Dou minha palavra! Não passaria a noite em claro se não tivesse certeza de que criaria uma embarcação ideal!


O menino levantou-se e encarou o mar por alguns segundos.


—Em quanto tempo chegaremos ao continente de Lapsus, Kolt?


—Em uma semana! —disse em um tom muito sério. —Mas se o vento continuar a soprar assim, então chegaremos lá em quatro dias.


Isso significava que, pelo menos em termos globais, a ilha se localizava bem perto do continente. Talvez na mentalidade medieval do menino, a ilha era isolada do mundo, mas para a mentalidade contemporânea de Rackel essa distância não chegava a tanto. Atravessar o mar até alcançar o continente já não lhe parecia uma loucura, mas o fato dela estar do outro lado da Terra de Alhetra era. Ela morava na cidade de Bares que se localizava no centro do continente de Flora. Tomando o continente de Lapsus como ponto de referencia, a mansão Casanova estava do outro lado do mundo. Rackel não estava longe de casa apenas cronologicamente, mas também geograficamente. Sentiu um aperto no coração, mas soube disfarça-lo bem. Porém, somente o primeiro modo realmente importava para a moça. Ela tinha que encontrar um modo de voltar para sua época, o ano 2100d.m.


Subitamente, uma dúvida surgiu em sua mente e ela não pode deixar de perguntar:


—E como faremos para não perder o rumo? Existem outras ilhas ao longo da travessia para tomarmos como ponto de referencia, não é?


Kolt pareceu não entender aquela linguagem.


—Eu conheço o caminho! —disse. —Tenho uma grande intimidade com a água e jamais me perderia no meio do oceano!


—Que loucura que está dizendo? Não tem medo de se perder?


—Para que temer algo que nunca irá se realizar, Rackel? O meu instinto nos mostrará o caminho. Já atravessei o mar do dragão uma vez e farei isso novamente!


—Quando?!!! —indagou a moça com descrença.


—Faz um ano!!!


—Hum... E por quê?


—Queria saber se o Reino Sagrado de Hurânia estava muito longe daqui! Eu já planejava essa travessia a muito tempo e precisei fazer um reconhecimento dessas águas para não me lançar ás cegas. Eu não queria me afastar muito da ilha e acabei alcançando Lapsus sem querer. Acho que eu estava muito empolgado... Mas hoje eu conheço o caminho e é isso que importa! Se bem que eu encontraria o continente mesmo que não conhecesse, mas isso levaria alguns dias a mais naturalmente.


—Está dizendo que pode atravessar o mar apenas se guiando pelo seu instinto?


—Sim!


Rackel sentiu que ele dizia a verdade. Talvez essa habilidade do menino fosse mais um de seus dons incomuns. Isso o classificaria como um hiper dotado de alto nível nos padrões do C.E.F. de Asgard. Essa era a prova de que os hiper dotados existiam a muito mais tempo do que ela imaginava. Se estivesse em sua época, Rackel faria de tudo para matricula-lo no Complexo Educacional, pois Kolt poderia desenvolver ainda mais os seus dons. Talvez poderia até se comparar com ela que era a hiper dotada mais valiosa do mundo.


—Devemos estocar água para uma semana, Rackel! —disse sem mais nem menos. —Depois partiremos!


—Já? —exclamou a moça. —Você passou a madrugada inteira trabalhando! Não vai ao menos comer algo antes? Não foi por isso que me pediu para que eu descansasse?


—Toda a comida de que precisamos está no mar. Me espere aqui!


O menino voltou para a floresta para buscar a água de que falava. Rackel se perguntava quando Kolt pararia de surpreende-la com o seu estilo de viver. Meia hora depois ele voltou empurrando cinco barris enfileirados cheios de água que rolavam pela areia. A moça arregalou os olhos mais uma vez.


—E de onde você tirou isso?


Kolt os colocou na embarcação enquanto dizia:


—A dois anos atrás dois navios de guerra se enfrentaram ali no horizonte! Eles fizeram tanto barulho com os seus canhões que acabaram irritando o dragão do mar...


—O dragão do mar? —interrompeu Rackel. —Está falando da lenda da besta que descansa nas profundezas dessas águas?


—Conheces a lenda?


—Pelo que sei, não passa de uma lenda mesmo!


—Mas ele é real! Eu vi daqui mesmo quando ele surgiu das profundezas do mar e esmagou os dois navios de guerra com uma só mordida!!! —o menino deu um murro no chão para enfatizar o ataque da besta.


Rackel não resistiu e caiu na gargalhada.


—Você está parecendo o Severino quando eu lhe pedia que me contasse uma história para dormir! Eu sempre fui uma aluna muito aplicada e jamais me contaram nada disso nas aulas de História. Os dragões são apenas lagartos parecidos com crocodilos e não aqueles monstros que cospem fogo. Parece que você vive em um mundo de faz de conta, Kolt!


O menino percebeu que ela jamais acreditaria no dragão até vê-lo com seus próprios olhos. Porém, Kolt estava rezando para não encontra-lo, pois isso seria a morte certa. Talvez a descrença da moça fosse uma benção, pois do contrário Rackel faria questão de passar o resto de seus dia longe do mar do dragão, estragando os planos da travessia para sempre. Era melhor que ela não acreditasse mesmo, assim não criaria mais obstáculos. Mas ele precisava justificar a origem do barris de algum modo.


—...então os navios naufragaram... —continuou o menino. —...e esses barris boiaram até a praia e eu os peguei para mim. Dana me sugeriu que os guardasse para estocar água quando fossemos viajar para o Reino Sagrado de Hurânia! Eis que o grande dia chegou, mas é uma pena que ela não esteja aqui.


—Entendi... —disse a moça, que pareceu acreditar na história do naufrágio com exceção do dragão, obviamente.


Sem mais delongas, os dois empurraram a embarcação em direção ao mar. Era pesada, mas ambos eram fortes e deram conta do recado. Vendo que ela realmente boiava, jogaram suas coisas em cima dela e deram início a travessia do mar do dragão. O vento estava a favor e a vela de folhas gigantes funcionava muito bem. Enfim, a embarcação não apresentou nenhum problema e em alguns minutos já estavam em alto-mar. Lentamente qualquer insegurança que sentiam com relação a embarcação foi desaparecendo


Foi quando Kolt disse que aproveitaria para dormir um pouco e para Rackel não se preocupar em perder o rumo, pois ele poderia retoma-lo facilmente assim que acordasse. Deitou-se no chão da embarcação e desmaiou perante a exaustão que sentia. Não se incomodou com o vento e nem com o pouco conforto que a embarcação oferecia. Naquele momento, o jovem guerreiro era apenas uma criança inocente que dormia embalada pelo som das ondas do mar e o da sua própria respiração. A moça o observou enquanto dormia e analisou cada detalhe de suas feições. Perguntou para si mesma como um garotinho tão pequeno poderia alimentar ambições tão grandes dentro de seu coração. Desejos tão fortes que o obrigavam a atravessar o mar do dragão pela segunda vez. Quem dera que em seu tempo existissem pessoas assim, quem dera que no seu tempo existissem amigos assim. Ela refletiu e chegou a conclusão de que, aparentemente, viajar no tempo poderia ser a melhor coisa que poderia ter lhe acontecido nas suas férias.


—Talvez eu não esteja tão perdida assim. —pensou. —Talvez agora eu esteja onde sempre deveria estar.






Pela tarde Kolt acordou faminto e Rackel só queria ver como ele iria encontrar toda a comida que eles precisavam ali no mar. Mas o garoto sabia o que fazer e a moça estava prestes a ver mais uma de suas inesquecíveis peripécias. Ele amarrou um longo cipó em sua cintura e a outra extremidade no mastro da embarcação, depois jogou-se no mar sem dar nenhuma explicação.


Não seria necessário dizer o quanto Rackel apavorou-se, pois chegou a pensar que ele a abandonara no meio do oceano, mas na verdade Kolt só queria pegar um peixe. Não havia isca e nem vara de pesca na embarcação, mas ele poderia usar as mãos. Para ele aquilo era um hábito que adquiriu tentando tornar aquela tarefa tão monótona em algo mais divertido. Não poderia perder a embarcação de vista já que estava preso a ela por meio de um cipó. Pouco tempo mais tarde, Rackel levou outro susto quando viu alguns peixes pulando da água para a embarcação. Era Kolt que, ainda debaixo d’água, atirava todos os peixes para lá. Estes se debatiam, como se soubessem que seriam devorados mais tarde. Em seguida, Kolt saltou das águas e caiu em pé na embarcação dizendo:


—Espero que tu não se importes de comer peixe cru.


—Louco! —disse Rackel, estagnada.


O menino sorriu e imediatamente tratou de preparar a refeição. Essas tarefas cabiam mais a Dana, mas haviam momentos em que Kolt sentia-se ocupado demais para ir comer em casa que por fim aprendeu observando-a como preparar uma refeição rápida. Somente para dias em que perambulava pela floresta por horas e só retornava para casa de madrugada, afinal as refeições de sua irmã eram insuperáveis. Com a faca de pedra ele tirou o couro, as espinhas e cortou a carne em filézinhos. Rackel apenas observava sem saber o que dizer.


—Comas, Rackel. Há carne aqui o bastante para matar nossa fome. Os peixes do mar do dragão são mais saborosos quando provados cru. Sei que gostarás!


Como já foi dito antes, Rackel era uma pessoa bem comum quando se tratava de comida. Não apreciava muito essas comidas exóticas que os povos do oriente tanto cultuavam. Meio contrariada, pegou um pedacinho e o mastigou lentamente enquanto Kolt a observava sorrindo.


—Hum.... —provou. —...é bom...é muito bom! Que sabor maravilhoso! Kolt, isso aqui é uma delícia!!!


—Já imaginava que irias gostar! Posso buscar mais se assim quiseres!


A moça devorou o suculento peixe e em seguida deitou-se no chão da embarcação. Novamente, passou a refletir sobre os dons maravilhosos do garoto. Já não era tão difícil entender como ele e sua irmã conseguiram sobreviver naquela ilha. Era apenas um garoto, que pelo menos aparentemente era mais novo do que ela, mas que mesmo assim lhe convencia a seguir seus conselhos. Seus cabelos eram azuis, sua pele era pálida e seus olhos verdes brilhavam no escuro. Rackel o classificava como um hiper dotado graças a sua agilidade, força e inteligência anormais. Seus dons eram bem desenvolvidos para alguém tão jovem, ainda mais para alguém que jamais pôs os pés no C.E.F. de Asgard.


—Kolt?


—O quê?


—Quantos anos você tem? —perguntou timidamente.


—Acho que já devo ter uns dez ou onze...


—Você acha?


—Passei tantos anos longe do continente que perdi um pouco da noção do tempo... —em seguida deu uma curta gargalhada.


—Então você é mesmo apenas uma criança... —disse Rackel enquanto observava as nuvens. —Eu já estava achando que fosse um anão ou coisa parecida. De criança você só possui o corpo, pirralho, porque se continuar a me surpreender assim daqui a pouco eu terei que te chamar de Sr. Kolt. Eu sou uma mulher de catorze anos e mesmo assim tenho que reconhecer que você tem muita astúcia. Conheci muitos menininhos da sua idade e todos eles são bem infantis! Já outros que são um pouco mais velhos não passam de uns retardados, como Rádiki por exemplo.


—Rádiki? Quem é esse sujeito? É o teu marido?


Rackel espantou-se com a pergunta:


—Está louco? Sou muito nova para me casar! Sempre quis namorar, mas não pretendo me casar antes dos 26!!


—Muito nova? Pois eu digo que tu estas muito atrasada! Uma vez, á muitos anos atrás, me disseram que quando Dana fizeres 12 anos um homem virá busca-la para torna-la sua esposa! Será que ninguém gostas de tu e por isso ainda não se casaste?


A moça levantou-se e furiosa segurou o menino pelo colarinho. Seus olhos estavam cheios de fúria e ela estava pronta para dizer algumas verdades para aquele menino atrevido. Então, para a sorte sua sorte, Rackel lembrou-se das suas aulas de História em Asgard. Lembrou-se do dia em que estudou um pouco da Era Medieval, quando algumas meninas realmente eram consideradas aptas para se casar aos doze anos. Kolt não merecia levar umas bofetadas, pois de certa forma ele estava certo.


—Não se irrites, não se irrites!!! —dizia ele apavorado enquanto Rackel o "enforcava". Ela era uma moça muito linda, mas que tornava-se assustadora quando ficava furiosa. —Não se irrites!! Eu me casarei contigo!!!


—Se casará comigo?


—Sim!!!!


Rackel não agüentou, caiu na gargalhada e largou Kolt que desesperado procurou tomar fôlego. Ela jamais imaginaria receber uma proposta de casamento de um menino de dez anos. Kolt falou com muita convicção, tornando a situação ainda mais engraçada.


—Vai ver como te farei feliz! —disse ele depois de tomar fôlego, mas a moça não conseguia parar de rir.


—Que gracinha!


Obviamente Rackel não planejava se casar com uma criança, alias, uma criança muito estranha aos seus olhos. Mas não deu muita importância a proposta, afinal foi dita por acaso. Na verdade achou uma graça ouvir um menino tão pequeno lhe pedir em casamento, mas não passou disso. E o menino provavelmente contentou-se com a satisfação de ainda estar vivo.






E assim passaram-se três dias que não foram muito diferentes do primeiro. Kolt pescou mais vezes e Rackel surpreendeu-se mais vezes também. Não passaram fome ou sede. Todas as noites eles contemplavam Carolina, ainda que sem confessar para o outro a fascinação que sentiam pela terceira lua. O mar permaneceu calmo e o vento esteve sempre a favor. A travessia fora tranqüila até que no pôr do sol do quarto dia Rackel avistou minúsculas montanhas no horizonte. Kolt correu para a ponta da embarcação e apertou bem o olhar. Em seguida concluiu:


—Lapsus...


Finalmente a travessia estava chegando ao fim. O vento e as ondas misteriosamente colaboravam desde o início e dessa forma nada poderia dar errado. Pelos cálculos do menino, ambos pisariam em terra firme antes da meia-noite. O sentimento de satisfação foi inevitável tanto quanto o abraço que se deram. Kolt sentia que Dana estava mais perto do que nunca e se o dragão do mar não o impediu, então nada iria impedi-lo de resgata-la.


No entanto a embarcação balançou como se algo pulasse em cima dela. Quando eles olharam para trás se surpreenderam, pois havia uma terceira pessoa na embarcação. Na verdade tratavasse de um jovem elfo, provavelmente da mesma idade de Rackel que os olhava com desprezo. Possuía longos cabelos com uma tonalidade um tanto lilás, mas que não escondiam suas longas orelhas. Seus olhos eram vermelhos e pareciam cheios de ódio e mágoas. Vestia vestes que lembravam alguns espadachins do oriente. Em seu cinto estava amarrada uma bainha onde repousava uma espada cheias de detalhes que não se encontrava em nenhuma loja de armas da Terra de Alhetra. Não faziam idéia de onde ele surgira, mas a sua presença repentina e fantasmagórica encheu o clima de medo.


—Jamais imaginei que seres inferiores como vocês se atreveriam a atravessar o mar do dragão! —disse o elfo, cruzando os braços numa imensa demonstração de arrogância. —Eu os parabenizo, mas não lamentarei a sua morte! Tenham certeza de que farei deste mar o vosso túmulo.


Kolt e Rackel não esconderam o mal estar que a ameaça lhes causou, mas devido a aparição repentina ou talvez por acreditar tratar-se de um mal entendido, a moça buscou um diálogo pacífico.


—Mas quem é você? —perguntou Rackel. —De onde você veio e por que está nos ameaçando?


A resposta do misterioso sujeito surgiu em forma de uma risada diabólica que intimidou Rackel sem a menor dificuldade.


Os ligeiros instintos de Kolt diziam que aquele elfo era uma ameaça, embora não soubesse qual era a sua origem. E como ele confiava cegamente em seus instintos, Kolt avançou em direção ao inimigo para desferir um murro em sua face. Mas a surpresa foi grande quando o elfo levitou os dois pés e esquivou do golpe do menino, que caiu no chão da embarcação. O elfo riu enquanto flutuava a três metros de altura da embarcação. Foi então que Rackel gritou para ele:


—Vejo que tem o dom da levitação!!!! Mas isso não nos assusta!!!! Diga logo quem é você e o que quer de nós!!!!


—Quê importa? —disse o elfo. — Vai morrer mesmo!


—A mando de quem?!! —gritou Kolt, levantando-se.


O elfo riu mais uma vez e disse enquanto ganhava altitude lentamente:


—Vocês devem sucumbir a minha vontade!! Não posso permitir que roubem o meu baú fechado!! É melhor que morram agora antes que tomem consciência da mandala mágica de Kiorra!!! Será melhor para vocês assim, será melhor para o mundo!


Kolt e Rackel se deram conta de que estavam diante de um inimigo. Talvez ele fosse um dos seqüestradores de Dana que surgiu para certificar-se de que ela jamais seria resgatada. Talvez ele fosse um assassino contratado para elimina-los e tudo indicava que ele também era um hiper dotado. Era evidente que uma batalha pela sobrevivência estava para começar.


Então, o elfo ergueu os braços para o céu e entrou em uma profunda concentração. Kolt e Rackel sentiram o vento ficar mais forte e as nuvens correrem pelos céus. O mar ficou mais agitado e a embarcação balançava violentamente. Ambos procuraram segurar-se no mastro para não cair no mar, o que era muito difícil graças a fúria das águas. Por fim, o elfo chegou no auge de sua concentração e baixou os braços com as palmas das mãos voltadas para a embarcação. Imediatamente uma fortíssima corrente de ar surgiu de baixo dela a quebrando em mil pedaços e atirando seus dois tripulantes a dezenas de metros de altura. Sua força e velocidade eram tão grandes que tornavam qualquer resistência impossível. Destroços voavam por toda a parte em meio a um barulho ensurdecedor. Ainda no ar e sem qualquer chance de reação, Rackel sentiu uma forte pancada na cabeça e desmaiou. Á dezenas de metros de altura ela já não estava mais a par do que estava acontecendo, mas mesmo inconsciente ela temia por seu destino.


—Carolina...Carolina... Carolina...


E então tudo se apagou e apenas uma risada carregada de ódio e de tristeza ecoou em algum lugar bem distante...

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